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Prosa 1

ENTRE QUARTO PAREDES

     Estou caminhando com minha solidão pelas linhas em branco de uma folha de papel. Preciso, urgentemente, chegar a um ponto final. Quem sabe a uma parada onde tenha uma vírgula, onde eu possa parar para meditar sobre caminhos. Se é que eles existem neste momento.

     As vias públicas seguem o mesmo padrão das linhas do caderno. Aqui, acolá uma vida em trânsito. Alguém fugindo da vazante do sofrimento. O que é singular? O que é plural neste mundo de solidão entre quatro paredes?

     Faço uma prece, pedindo ao deus tempo que apresse o calendário  do meu padecer em máscaras ladinas.  O tempo está parado, imutável como as flores de plástico. Olho para o relógio e me pergunto: ─ “Que rosas são?” São sempre-vivas, as flores ideais para a estação.

     Percebo a irritação da folha de papel insuflada pelo vento. Agita-se, muda de lugar e dá asas à imaginação, sai tropeçando pela casa. Cega de ódio, com a ira de uma mulher rejeitada. Corro atrás dela. Preciso exercitar-me, peço perdão e a colho suavemente. Deito-a sobre a escrivaninha e pergunto: vamos conversar?  Ela se abre para mim e diz: ─  Gosto de você quando estamos na mesma linha e tenho você em meu coração.

     Take your pen e deite-o sobre mim. Faça seu papel  e com as lágrimas que jorram da ponta de seu pen... escreva uma linda história de amor. Basta uma linha numa folha em branco ou um fio de novelo para você sair do labirinto em que se meteu. Não fuja de mim num virar de páginas. Você é o pronome que me ilumina.

     Uma linha alcançou-me o ouvido e não foi a do novelo de lã, porém serviu para tirar-me do labirinto em que me encontrava. Rodante surpreendeu-se com minha contestação. Cá já estou! ─ Desculpe-me! Ligação errada. ─ Não, amiga! Ligação correta.  Cá estou a brincar consigo. Não ouves que estou a falar o português da terrinha.  Estou lendo A Máquina de Fazer Espanhóis e aproveitei para fazer firulas com a língua.

     ─ Como andas?

     ─ Sentado, amiga.

     ─ Engraçadinho! Como estás?

     ─ Sentado, amiga. Levanto para ir ao banheiro, para comer e deito-me para dormir.

     ─ Não estás caminhando?

     ─ Caminho do quarto para a cozinha, da cozinha para o escritório, do escritório para o banheiro.

     ─ Pelo menos o humor continua em alta. Como ocupas o tempo?

     ─ Amiga! Acertei os ponteiros. Tive uma longa conversa  com as sem horas, e as pus dentro do relógio, assim posso controlá-las facilmente. Por outro lado, embrenho-me pelos meus livros e interajo com os personagens que criei. Neles há de tudo: prostitutas, músicos, trabalhadores e muita gente interessante. Se precisar de um mecânico e não o encontro nos livros, resolvo fácil, crio um novo conto e incluo o personagem no texto.

     ─ Alguma novidade, amigo?

     ─ Sim! Acho que exagerei os pecados ou cometi algum crime, pois estou sendo seguido por um grande número de pessoas. São tantos os rostos desconhecidos que agora me habitam que provavelmente estou sendo perseguido. Essa sensação está me deixando louco. Até dentro de casa o espelho me persegue por todos os cantos. Imagine, amiga, centenas de pessoas curtindo o meu perfil e eu a bater de frente com suas fotos. A carência está muito grande, amiga. O espelho me diz todo dia: apare o bigode, faça as unhas, corte o cabelo. Você está tão gordo!

     Outro dia entrei no banheiro com um limão e o espelho fez uma cara feia e disse-me: ─ Onde você pensa que está? Isto aqui é o banheiro, ─ Eu sei, amigo. Meu desodorante acabou e não há como comprar outro. Eu sou alérgico e só uso um tipo de cosmético, como a loja está fechada a solução é tomar banho e usar o limão.

Amiga! Fale-me um pouco de você. 

     ─ Estou trabalhando em casa e confesso que estou adorando os dias normais. Minhas despesas caíram bastante, tenho mais contato com os meus filhos e acredite, o trabalho, pela primeira vez na vida, não está me estressando. Vou fazer uma inconfidência mineira. Arranjei um namorado novo e estou trocando alguns nudes para aliviar a tensão provocada pela quarentena. 

Cuida-te, amigo, quero vê-lo em breve.

     ─ I see you in september. Bye!

     Nada mais me agrada do que a prosopopeia de acordar um sonâmbulo lápis, deitado sobre uma lauda com o pretexto de enfeitar uma metáfora. Desliguei a televisão no momento em que começava o obituário nacional das oito horas. As chamadas são como um grito de gol. Brasil ultrapassa os cem mil casos confirmados da covid-19 na abertura do programa. Ao final a repórter põe mais ênfase e diz: Nossos números atualizados pelo sistema...de televisão confirmam a existência, neste momento,  de mil novos casos. Com direito   a um corte na imagem e ênfase na colocação. Boa morte!

     Resolvi mudar o obituário nacional e fiz o inventário da dor. Agora, as chamadas das afiliadas serão feitas por uma música que identifique o estado ou a cidade citada. Recife! Entra no ar a letra de Evocação Número Cinco: Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon cadê teus blocos famosos. Fortaleza! Entre no ar Luiz Gonzaga cantando A Triste Partida: Meu Deus, Meu Deus, o que será de nós. Rio de Janeiro! No ar O Bêbado e a Equilibrista: Caía a tarde feito um viaduto e um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos. Agora é a vez de Minas Gerais: Boiadeiro, veja a cruz no chão quem matou o meu menino foi o vírus. Mossoró! Entra Marinês cantando: A Minha vida ficou lá em Mossoró.

     Acordei com as horas vagas. Em tempo de quarentena o tempo não preenche o dia. Olhei meu pulso, procurei as horas e não as encontrei, havia-me esquecido que as pus trancadas no relógio para controlá-las. O silêncio foi profundo em seguida e muito mais profundo foi meu respirar.

     Durante essa pandemia estou dormindo as horas várias e acordando as horas vazias. Tenho um sentimento de esquecido e ninguém se assoma a meus pés. Hoje desci ao rés do chão para fazer a lixívia do apartamento. O sol marca as horas mudando de janela e de coloração. O sol continua iluminando a tragédia humana, indiferente às dores da população. A Lua com sua alegriazinha ingênua vestiu-se de máscaras e me pareceu tão jovem. À noite cobrou-me a sonolência que só um fado sentimental pode compreender o fardo que carrego entre paredes.

 
 

Marcos Antonio Campos

É escritor e poeta formado em Letras e

Administração. Possui 5 livros e dois cordéis publicados.

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